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sexta-feira, 19 de abril de 2024

Julita

 


Força da vida, a chuva lava as dores. Ou abranda. 19 de março é presságio de boa-nova, na preparação para a quaresma. Se chove no Ceará, é sinal de fartura. Benza deus, que isso se cumpra. Meu pai, num dia desse, se vivo fosse, estaria chorando de felicidade. Quantas vezes não o vi, a caminho do sertão, vendo o mato verdinho, se cobrir de lágrimas. Fui ao sertão há uma semana. Ainda restava uma irmã de meu pai viva, tia Julita, e a sua prole. Quis fazer uma surpresa. Levei um presentinho, uma lavanda, sabendo que ela era vaidosa, mesmo no auge de seus noventa anos. Quando cheguei, a bodega estava fechada. Maria Lúcia, sua filha mais velha, relatou que vinham passando por dias difíceis. Tia Julita havia sido internada na UPA, mas agora estava em casa, de repouso. Em regra, não poderia visitá-la, porque ela não devia se emocionar. Havia algo no coração que a fragilizava. Relembrei-me dos irmãos de papai, três morreram por gravidades no coração; era uma sina desleal, revoltante. Eu mesmo terei de vigiar, desatento que sou, os exames do coração. Já não tenho idade suficiente para brincar. Com muita cautela, tia Julita foi avisada sobre a minha presença, e insistiu que me deixassem entrar. Maria Lúcia, com quem a mãe morava, pediu que eu não me demorasse nas conversas, que ela precisava dormir – não teria dormido a noite passada. Entrei, dei um beijo demorado na sua cabeça, com cheiro de alfazema, e vi duas lágrimas rolarem de seu rosto. “Meu filho, toda vida que você vem me lembro de seu pai. Como você é parecido com ele…”. Comove-me o fato de me parecer com o meu pai, não só na aparência, como nos trejeitos. Vejo-me, repetidas vezes, colocando as mãos por sobre as coxas, enviesadas, como ele fazia em suas paradas para refletir. Tia Julita estava mesmo bastante fraquinha, apesar de sua corpulência. Respirava com ajuda de um aparelho e um cilindro de gás. Lembrei-me do tempo em que chegava em sua casa e era recebido com um abraço forte. Tia Julita me disse, no derradeiro momento, que eu era o sobrinho mais amado. “Não diga isso, titia, tem João, Augusto, Eduardo…”. “Não, você, além de ser bondoso, atencioso, é a cara de meu irmão, que tanto amei. Você é a extensão dele na terra”. Aquilo parecia uma despedida. E foi. Fiquei um dia inteiro com Maria Lúcia, reavivando as nossas travessuras. Comemos, para não perder o costume, a tão famosa galinhada, que Maria Lúcia faz tão bem, como a mãe. Senti que nossos laços ainda estavam preservados. Regressei à casa no fim da tarde e jurei voltar umas tantas vezes até que tia Julita estivesse recuperada. Não deu tempo. Três dias depois estava no mesmo lugar, agora para o seu velório. Como hoje, choveu forte em Oiticica, presságio de tempo bom. Ela foi leve, bendita, e deixou os seus sinais.





quarta-feira, 17 de abril de 2024

Trampolim. Poema de Maitê Rosa Alegretti


Trampolim





um amontoado de sonhos

aproxima-se

são rostos e amarras

desnudas


um vórtice

de palavras anônimas



as ultrapasso

& as sinto



envoltas em um

elástico trampolim

sem cordas



quedam e flutuam

& e com o pensamento

as estico


tentando criar algo

novo



um boneco de argila

repleto de ar


que sem aviso se vai

que sem aviso

não se deixa

entender


*





sábado, 13 de abril de 2024

O encontro/desencontro

 

O encontro/desencontro

JP sentou-se numa mesa, situada num recanto anichado debaixo de uma escada, que dava para a parte superior do salão. Era a primeira vez que tinha entrado naquele estabelecimento para tomar um café e descansar um pouco os pés da caminhada desde a estação do metro até ali.

O cansaço não tinha sido por causa da distância percorrida, que não foi muita, mas por causa da viagem em pé na carruagem que o tinha maçado um pouco.

Aquela estação onde saiu não era o seu ponto de destino, mas naquele dia o Metro vinha à pinha e essa foi a razão que o levou a sair antes do tempo.

Nunca tinha ido àquele lado da cidade e, por isso, não conhecia aquela zona que ainda ficava muito distante da sua área de residência e também do seu local de trabalho, que ficava quase no fim da linha. Digamos que ficou num ponto intermédio entre a origem e o fim.

JP ia tão entretido nestes pensamentos que não viu que a seu lado se tinha sentado uma jovem. Só quando ela, numa voz suave, pediu um chá e uma torrada é que ele despertou para a realidade vivida à sua volta. Olhou para ela e momentaneamente os seus olhares cruzaram-se, mas instantaneamente descruzaram-se e não mais se voltaram a encontrar, durante o tempo que estiveram lado a lado no café, que não foi muito tempo. A jovem, assim que comeu a torrada e bebeu o chá levantou-se e foi-se embora. Ele ainda ali ficou mais algum tempo e depois também foi ao seu destino.

Esta cena passou-se numa quinta-feira de manhã.

O pensamento de JP teimava em voltar ao cruzar dos olhares e por aí se detinha mais tempo do que o que o tempo que tinha acontecido, que foi um cruzar de olhares fugaz, mas, mesmo assim, parece que deixou marcas.

No outro dia voltou ao café, mas a companhia da mesa ao lado não apareceu. Voltou na segunda, na terça, na quarta e na quinta, mas nada, só a mesa ocupada por outras pessoas. Na semana seguinte arriscou voltar ao café na quinta-feira, quinze dias depois, e viu-a sentada na mesma mesa a tomar um chá e a comer uma torrada.

Sentou-se na mesa anichada debaixo da escada e pediu um café. Levou a chávena à boca e olhou para ela. Os olhares voltaram a cruzar-se, mas desta vez o tempo parou o tempo e nele se cruzaram.

Nada mais aconteceu e cada um foi para onde tinha projectado ir.

Quinze dias depois, na quinta-feira, ao encontro dos olhares seguiu-se uma troca de palavras de circunstância, mas que escondiam a promessa de encontro de outras palavras.

O café era muito frequentado e os clientes entravam e saiam ao ritmo dos seus afazeres e ninguém queria saber de ninguém. Quem estava, estava, quem já não estava não deixava rasto. Era a vida a andar numa cidade metropolitana, ninguém reparava no outro, só aqueles dois, a jovem e o jovem, vizinhos circunstanciais de mesa num café, situado num ponto intermédio entre a origem e o fim da viagem.

 Correram tempos e uma quinta-feira os dois jovens saíram juntos e despediram-se no passeio, seguindo cada um o seu caminho. Nada sabiam um do outro, porque as conversas tocavam muitos assuntos, mas nenhum de carácter pessoal. Até àquele momento nenhuma palavra acerca de cada um deles, nenhuma inconfidência. Qualquer rumo de conversa que ousasse entrar em domínios de personalidade era orientada com delicada leveza para outro caminho.

Os encontros continuaram e a relação entre os dois foi-se intensificando. À mesa do café conversavam sobre tudo e mais alguma coisa, nada ficando por dizer. Passaram a saber muito das preferências e gostos: leituras preferidas, filmes e músicas, convicções políticas e religiosas, simpatias clubistas, posicionamento relativamente às questões sociais e políticas.

De uma coisa nunca falaram: Quem é Quem.

A companhia circunstancial deu lugar à amizade que cresceu e se transformou numa relação mais intensa e a intimidade começou a pontear e os afectos começaram a aparecer com toda a naturalidade. Quando a afectividade rompeu as barreiras e a relação de uma maior intimidade se mostrou em toda a sua beleza ela disse:

̶  Vamos continuar com a nossa relação da maneira que ela está. Nenhum de nós vai tentar saber quem é quem, seremos dois amantes que se conhecem um ao outro, mas que não conhecem quem é o outro.

Os anos foram passando e o pacto foi cumprido. Nem nome, nem morada, nem estado civil, nem profissão, nada de nada. Só eles os dois num presente sem rasto de passado.

Durante mais ou menos doze anos os vizinhos da mesa do café encontraram-se todas as quintas f

eiras de quinze em quinze e mantiveram intacta a sua relação amorosa.

Em 2020 o mundo foi assolado por uma pandemia que matou milhões de pessoas.

Numa das quintas feiras de Março de 2020 ela sentou-se na mesa do café e pediu um chá e uma torrada e esperou por ele.

Ele não apareceu nesse dia de quinta-feira e entretanto foi imposto o período de confinamento e o café fechou e o metro parou e as pessoas deixaram de andar na rua.

E assim foi durante meses e meses.

Quando o confinamento acabou, o café abriu, o Metro passou a funcionar e as pessoas saíram para a rua.

As quintas-feiras sucediam-se e ela sentava-se sempre na mesma mesa, pedia um chá e uma torrada e continuava a esperar por ele.

Ele nunca mais se sentou na mesa anichada debaixo da escada, que dava para a parte superior do café.

 

 

 

 

 

 

  

 





terça-feira, 9 de abril de 2024

Jéssica


 

Foi com um suspiro que, infelizmente, já se tornara habitual que Jéssica desligou o despertador e afastou os lençóis. Custava-lhe cada vez mais levantar-se, por muito que tivesse dormido. E, muito francamente, não tinha razões de queixa nessa área, muito pelo contrário. Podia-se até dizer que nunca dormira tanto, mal se deitava, pumba, adormecia logo para só acordar com o estridor do alarme, que fazia questão de usar também aos fins de semana ou arriscava-se a passá-los totalmente a dormir.

Nem sequer era o facto de morrer de tédio no empregozito que arranjara e que mal dava para as suas despesas básicas. Não, o seu tremendo cansaço ia bem mais fundo, abrangia todas as áreas da sua vida, se é que se podia chamar vida ao que tinha: acordar, ir trabalhar, voltar a casa, comer, dormir, repetir, sendo a única diferença o trabalho dar lugar a pasmaceira total aos fins de semana e feriados.

Sim, havia uma ou outra saída casual com amigos, mas por mera rotina, já nada tinham a dizer uns aos outros e nunca acontecia nada de novo que pudesse dar origem a alguma excitação, por muito artificial que fosse.

Pior ainda, não antevia qualquer alteração profunda no resto da sua vida, sabia que acabaria por fazer como os outros, casando-se com um dos elementos solteiros do grupo, não importava qual, para passarem a aborrecer-se a dois. Enfim, uma mera repetição da vida dos pais e de muitos outros por ali, empregos sem futuro, falta de dinheiro crónica e, acima de tudo, falta de entusiasmo pela vida.

Estranhamente, foi precisamente nessa sexta-feira que teve um vislumbre de mudança. Foi, como sempre, ao bar do bairro com o pessoal do costume, apesar de nem gostar de beber. Mas fazia parte da rotina, por isso lá se dispôs a beber uns refrigerantes de fraca qualidade bem mais caros do que os bons do supermercado. Em tempos chegara a fazer as contas a quanto pouparia por mês sem esta e outras saídas “por obrigação”, mas desistira a meio, era demasiado deprimente.

Pois bem, nessa noite havia uma novidade, uma presença nova no grupo. Bom, não propriamente nova, a Carla crescera com eles mas decidira tirar um curso técnico à noite e acabara por arranjar um bom emprego fora dali. Voltara por uns dias para tratar de levar a mãe idosa consigo, uma doença debilitante forçava-a a abandonar o seu lar de muitos anos mas pouco ou nada podia fazer a esse respeito.

A noite já ia avançada quando Jéssica se viu a sós com Carla durante alguns minutos. A conversa derivou, sem que soubesse como, para o curso que permitira à sua ex-colega mudar radicalmente de vida. E o bichinho ficou...

Nos dias seguintes deu consigo a pensar no caso, a tal ponto que foi até procurar informações sobre o que estava disponível, horários, etc. E Carla tinha razão, mesmo com o seu magro ordenado era perfeitamente viável, sobretudo se deixasse as tais saídas entediantes e dedicasse esse tempo e dinheiro aos estudos.

Mas o grande motivo da sua hesitação estava no temor da reação dos outros. Ainda se lembrava do que tinham dito – ela também, claro, quando Carla os largara para “melhorar a vida”, como então dissera. E tinham, de facto, perdido o contacto com ela, aquela noite no bar fora a única exceção em muitos anos.

Por outro lado, a sua vida melhorara de facto, não só financeiramente mas também em termos de qualidade de vida. A fazer fé no que lhe contara, tinha agora amigos a sério e não meros conhecidos que se mantinham em grupo porque tinham crescido juntos. E com uma formação adequada poderia finalmente sair dali, como sempre ansiara fazer, mas de um modo vago e sem esperança.

Após semanas a ruminar, decidiu inscrever-se num curso de apoiante de idosos, é que de acordo com o folheto havia muita procura sobretudo nas grandes cidades e, com a fraca oferta, os salários eram bons.

Os meses que se seguiram foram dolorosos. Nunca fora grande estudante e, para além da parte teórica, o curso tinha uma forte componente prática que, para pessoas como ela, do curso noturno, era dada nos fins de semana. Junte-se a isso a reação mais do que esperada dos seus supostos amigos e o isolamento em que passou a viver por não ter tempo para conviver.

Mas não só, havia ainda uma vozinha interior que nunca se calava e que lhe apontava o disparate de aprender algo com a sua idade, devia era pensar em casar e assentar, quem é que ela pensava que era para querer uma vida diferente da que lhe calhara em sorte?

Pode-se mesmo dizer que de todos os fatores com que teve de lutar, este foi, de longe, o pior, pondo Jéssica à beira de desistir inúmeras vezes, sobretudo quando sabia que o grupo se estava a divertir enquanto ela trabalhava. Nesses momentos esquecia até o imenso tédio que essa suposta diversão sempre lhe causara e o facto de nada ter em comum com os amigos exceto o hábito de estarem juntos.

Mas lá foi labutando até que um belo dia conseguiu o almejado diploma. E ainda antes de se formar oficialmente já tinha uma colocação, numa cidade distante, para tomar conta de uma idosa acamada com quem viveria.

E lá partiu, sem se despedir de ninguém, tinha a certeza de que não notariam a sua falta, tal como não tinham sentido a de Carla tantos anos antes.

Luísa Lopes

Imagem feita com QuickWrite






quarta-feira, 3 de abril de 2024

( )




 Suspenso na tarde

como uma lâmpada queimada

num porão deserto,

figura o lado esquerdo

de um parêntesis aberto.


Seu estado resulta

do itinerário de sombras

em que um homem se perde

na solidão de seus próprios passos,

esquecidos sequer sem deixar uma marca.

 

Sua abertura demonstra

a imperiosidade do erro

que determina sempre

que as flores se abram para cumprir

seu papel de beleza e de decomposição.

 

O parêntesis aberto no escuro

não é senão a necessidade

de se sair do estágio de clausura,

quando se esgota (ou assim se imagina)

a fonte de oxigênio íntimo do ser.

 

Mesmo quando já se sabe

que na asfixia de ele estar fechado

sobrevive pelo menos a sua integridade,

e abri-lo significa a dispersão da energia

que ele guarda de si para si como um transistor.





sexta-feira, 29 de março de 2024

Os Refugiados

 

 
Na Madrugada dos Tempos - Parte 20

 

A guerra é uma parteira: das entranhas do mundo faz emergir um outro mundo.

Não o faz por cólera nem por qualquer sentimento.

É a sua profissão: mergulha as mãos no Tempo,

com a altivez de um peixe que pensa que ele é que faz despontar o mar.

Mia Couto

Escritor e Biólogo moçambicano

Nascido em 1955

 

Mirsulo e a sua comitiva partiram há algumas semanas, levando consigo o ferido Tibaro, agora em franca recuperação.

Para Barinak fora um encontro muito produtivo. Apesar de não terem conseguido saber como fazer o tão desejado cobre, obtiveram um bom acordo com o sal, que seria trocado por pontas de lança e de seta. Além disso, de modo a conseguir trazer mais sal de cada viagem, Mirsulo iria entregar dois burros já domados e levou com ele um homem que iria aprender a lidar com os animais. Seriam pagos com a primeira entrega de oito cestas de um cotovelo de largo e dois de fundo, cheias de sal.

É verdade que socorreram um estranho e fizeram tudo para o ajudar, sem esperar nada em troca, mas essa era a lei de quem habita grandes espaços desertos. A vida é escassa e preciosa, por isso, os humanos devem ajudar-se reciprocamente e, mesmo na caça, só matar aquilo que se planeja comer.

Mergulhado nestes pensamentos, Erem ajudava a abrir a cova para mais um monólito, que chegaria dentro de dois dias. Já se avistava, numa colina a norte, o grupo de dez diligentes homens e mulheres que o fazia rolar sobre troncos. Seria o oitavo, de um total de vinte e quatro. O chefe do clã mudava assim o tema das suas preocupações; a ideia inicial era ter dez monólitos quando fizessem as festas das fogueiras[1], mas estavam com um atraso de dois. Não era grave, mas o décimo monólito seria o representante da estação e não estaria lá.

A festa das fogueiras era uma ocasião importante; seria escolhido um casal de adolescentes que envergaria respetivamente uma pele de auroque macho e uma de fêmea. O macho, ostentando enormes cornos, dançaria com a fêmea e simulariam o acasalamento. As crianças correriam em volta deles atirando as flores colhidas nos dias anteriores, para a união ser abençoada e produza muitas crias para alimentar os humanos. Ao anoitecer, as fogueiras acender-se-iam em vários pontos da aldeia e os jovens, para mostrar a sua força e coragem, fariam saltos mais ou menos acrobáticos por cima delas. Era uma noite de alegria e felicidade onde se festejava o milagre da vida e da fecundidade… naquela noite seriam concebidas algumas crianças que haveriam de nascer ao aproximar-se o fim do inverno. Naci, que partira entretanto para Hatiweik a fim de ir buscar a sua nova esposa, iria apresentá-la a Barinak nessa altura, buscando a bênção de Swol.

Pelo canto do olho, o chefe do clã viu um dos miúdos do grupo de Tailan aproximar-se em corrida.

— Erem! — A voz esganiçava fez-se ouvir ainda antes de parar a corrida. — Estão a chegar… — estava ofegante —… estão a chegar…

— Quem está a chegar? — Ele fingiu um ar aborrecido. — Fala, rapaz!

 — Muita gente… — o miúdo ainda não conseguira recuperar o fôlego —… vem aí muita gente… com trouxas e animais… muitos! Estão a ir para a casa da reunião.

Sem perceber que tipo de invasão seria aquela, Erem meteu-se ao caminho em passos largos, o que resultou num abandono geral do trabalho; todos o seguiram, mortos de curiosidade.

Ao aproximar-se da casa da reunião estremeceu. Havia um grande grupo de pessoas, como o rapaz dissera, com trouxas, crianças e animais. Eram principalmente mulheres, mas havia alguns homens entre elas. Sem contar, eram quase tantos quantos os habitantes de Barinak. Não sabia o que dizer e caminhou entre eles, atordoado, olhando-os e sendo olhado com curiosidade.

— Erem! — Uma voz feminina chamou de entre os estranhos. — És tu, Erem?

Procurou a origem da voz e localizou uma mulher, já entrada nos anos, bastante magra e com o rosto tisnado do sol e coberto de rugas. Havia qualquer coisa de familiar nela.

— Erem! — Ela insistiu. — És mesmo tu! Sou Cira!

O nome acertou-lhe como uma pedrada e uma onda de recordações; era sua tia, uma das irmãs de Birol. Correu a abraçá-la e interpelou-a com uma enxurrada de perguntas. Queria saber que estava ali a fazer, onde estava o resto do clã, quem era aquela gente…

Gradualmente, mais dos habitantes de Barinak apareciam e vinham questionar os recém-chegados. Havia estranheza por verem o seu chefe a conversar alegremente com um deles, mas alguns reconheceram a irmã de Birol e saudaram-na mais ou menos efusivamente.

Cira tinha muito que contar. Com lágrimas nos olhos, começou a narrativa:

“Após nos separarmos, seguimos sempre na direção da nascente do lago salgado. Retomamos a vida nómada, Birol estava obcecado em ver a grande catarata, para desagrado de alguns dos nossos que foram abandonando o clã assim que passávamos perto de alguma povoação.

O lago salgado, porém, crescia imenso a cada mudança de lua. Encontrávamos várias aldeias abandonadas e a terras, começando a salgar, estavam repletas de vegetação morta e despovoadas de pessoas e animais. Começamos a passar fome e o meu irmão não queria ouvir as vozes do clã que diziam para nos afastarmos do lago.

Por fim, chegamos a uma área muito extensa de terras encharcadas. Já não tínhamos comida há alguns dias e a água potável estava a acabar, toda a que nos rodeava era salgada ou cheirava mal. Acabamos por perceber que havíamos percorrido uma grande distância a embrenhando-nos num enorme pântano. A passagem que usamos foi-se estreitando até chegar a um sítio sem saída. A única solução era recuar, virados para Ner[2] até conseguirmos uma passagem que nos tirasse dali.

Birol já estava com febre e sentindo-se fraco há algum tempo. A fome e a sede que passamos naquela armadilha mortal acabaram com ele e com mais uns quantos dos mais fracos. Quando finalmente encontramos uma passagem, estávamos reduzidos a metade dos que começaram e mais mortos que vivos. Logo a seguir encontramos uma nascente de água doce e foi a nossa salvação.

Estávamos desvairados e perdidos, sem saber o que fazer. Retomamos a caminhada seguindo as estrelas-guias até encontrar uma povoação. Mas eles não nos quiseram lá. Tinham um muro de troncos em volta das casas e só nos deixavam montar as tendas no exterior. Podíamos entrar durante o dia, mas ao anoitecer tínhamos de sair.

Aí aconteceu a divisão; o meu irmão mais novo, Okan, revoltado por termos sido guiados numa caminhada para a morte, não quis mover-se mais; perdera a mulher e dois filhos, restava-lhe apenas uma menina. Ficaria ali, o povo da aldeia acabaria por os aceitar. A prima Ezgi e a maioria escolheu continuar para poente. Eu e o meu filho Demir e a mulher, Gizem, decidimos que voltaríamos para trás à tua procura. O Clã do Rio Brilhante, depois de tantos invernos a crescer e a tornar-se um dos maiores, destruiu-se completamente. O crescimento do lago salgado e a insistência louca do meu irmão reduziu-nos a nada.

Depois disso temos caminhado por essa terra imensa até que, no inverno passado, parámos numa povoação chamada Annakos a poente daqui. Já tínhamos ouvido falar de Barinak por caçadores e pastores, que ficava a poucos dias de distância e do seu amado chefe. Embora não soubéssemos o nome, já suspeitávamos de quem se tratava. Mais uns dias e empreenderíamos a viagem para cá. Aconteceu que, uma tribo nómada de Ner atacou a povoação, matou muita gente e roubaram tudo o que puderam levar. Perdemos Demir nesse ataque e acho que toda a população se dispersou, deixando Annakos vazia.

Pela minha parte, se tinha de fugir, que fosse para junto do meu sobrinho e da minha família. Esta gente que me acompanha sabia da minha intenção e resolveu seguir-me. Também eles vieram ao som das histórias do santuário que aqui se constrói e que protege este povo.”

Erem olhou o aspeto desolado daquele grupo, com carinho, mas, ao mesmo tempo preocupação. Era um número muito grande de bocas a alimentar.

Alim chegou, espantado com a quantidade de pessoas que ali via reunidas. Foram chamá-lo que estava junto de Lemi, de quem se tornara muito amigo. Este último não viera porque estava cada vez mais debilitado e já não andava. Tailan apareceu quase a seguir, acompanhado pelos cerca de cinco outros homens que atualmente o seguiam para todo o lado. Falava-se em lutas entre os “estrangeiros” de Barinak, a liderança dele era contestada.

— São nómadas? — Perguntou Alim diretamente a Erem.

— Não. — Respondeu o chefe do clã sem hesitar. — A maioria vem de Annakos, já estive lá, numa das minhas últimas caçadas. — Foram atacados e a aldeia foi destruída.

— Querem ficar aqui? — Tailan mostrou-se desagradado. — Não podemos aceitar tanta gente. Vejam só; quase só mulheres e crianças! Não podemos alimentar tanta gente.

Humilde e pacientemente, o grupo de refugiados mantinha-se praticamente em silêncio. Continuavam sentados no chão, agarrados aos seus pertences, olhando com esperança para os três homens que decidiriam o seu futuro.

— Algumas crianças já são crescidas, já trabalham. A maioria das mulheres são jovens, de certeza que poderão alimentar-se. Trazem alguns homens e alguns animais… — Alim observou, aproveitando o que de bom se conseguiria obter.

— Teremos de ver o que podemos fazer. — Disse Erem pensativamente.

Zia e Nehir aproximaram-se, também surpreendidas com aquela quantidade de estranhos de uma só vez. Ambas reconheceram a velha Cira e logo se abraçaram e beijaram-se, chorando de alegria com o reencontro. A curandeira, no entanto, começou de imediato a verificar entre os refugiados os que estavam feridos ou doentes.

— Mas… — Tailan estava espantado. — Estão mesmo a pensar em aceitá-los? Que faremos a tantas bocas?

— São bocas, mas também são braços e cabeças. — Erem olhou diretamente o amigo. — Estranho que sejas quem mais reclama, quando, também tu, foste um estranho em Barinak.

Ele não gostou de ser recordado e virou o rosto, contrariado, vendo chegar Fikri e Remzi, os filhos de Lemi, chamados da equipa que arrastava o monólito. Sabia serem críticos daqueles que continuavam a chamar estrangeiros e apelou à sua opinião: — Fikri, o teu primo pensa receber esta gente em Barinak. Que te parece?

O visado e o irmão olharam demoradamente para o grupo, aparentando não ter reconhecido a tia, pois eram muito novos quando saíram do Clã do Rio Brilhante. Quando os olhos de Fikri tornaram para o membro do conselho que o questionava, já a habilidade diplomática herdada de Lemi se sobrepunha à sua habitual impulsividade; percebera o conflito e que tinha de tomar uma posição. Ou estava do lado do primo, ou daquele homem, que detestava e admirava ao mesmo tempo.

— Porque está o nobre Tailan preocupado com mais estrangeiros a chegar aqui? — Ele colocou o braço sobre o ombro do irmão mais novo para que este não se manifestasse. — Todos sabem a minha opinião, não ma pediram quando vos aceitaram, mas também não era necessário, porque Erem é o nosso chefe e confiamos nas suas decisões. — Exibiu um pequeno sorriso para o primo. — Além de tudo, apesar de eu não gostar, os estrangeiros em Barinak têm sido muito úteis.

— Veremos o que dirá Naci quando regressar. — Respondeu Tailan com azedume.

— O meu filho, foi buscar a sua nova esposa fora do clã. — Ripostou Erem. — De resto, também pessoas do teu povo procuraram homem ou mulher entre nós e os nossos entre os vossos. Não defendias tu a união?

O rosto de Tailan fechou-se contrariado e cruzou os braços sobre o peito. Sempre fora um homem impressionante, que respirava energia e liderança. Agora, permanentemente seguido pelos seus protetores, estava habituado a que a sua vontade se impusesse sem necessidade de se justificar.

— Entre os nossos povos, sim. — Ele respondeu lentamente, sopesando cada uma das suas palavras. — Entre aqueles que vivem, nascem e crescem em Barinak.

Zia aproximou-se, entretanto, sentindo a tensão que se formava. Mesmo que inconscientemente, Tailan e o seu séquito estavam perfeitamente agrupados frente a frente com os vários elementos do Clã do Leão das Montanhas.

— Verás, que será bom para todos. — Erem deu um passo em frente e pousou conciliadoramente a sua mão sobre o braço de Tailan. — Não vês aqui novas esposas para os nossos homens? Crianças que em pouco tempo serão caçadores, pastores, pescadores? Mais braços para ajudar a construir o santuário. Em breve não se distinguirão de nós.

— O que eu vejo, — o chefe dos estrangeiros replicou com uma careta e sem perder a pose defensiva —, é uma grande quantidade de bocas a alimentar e um grupo perseguido por inimigos. Sabe se virão atrás deles? Eu não os quero junto de mim. — Com esta sentença, virou costas e afastou-se rudemente, seguido pelo séquito de guarda-costas.

Erem olhou para Zia, que se mantivera calada todo o tempo e depois tornou para o grupo que se afastava. Tailan, porém, ainda tinha mais um aviso e interrompeu brevemente a marcha para o fazer: -- Devias estar preocupado era em preparar para te defenderes, em vez de construir um santuário e estar a receber quem não se pode defender sozinho.



[1] Correspondia aproximadamente à primavera

[2] Norte

         
    

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Introdução

Manuel Amaro Mendonça

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quarta-feira, 27 de março de 2024

Ao Vento

 





sexta-feira, 22 de março de 2024

Animal por Animal

 


Não há palavra ou expressão que, por si só, conceitue ou determine as unidades elementares de nossa existência, ou qualifique, com êxito, o ser humano – e tampouco todos os vocábulos e todas as sintaxes fracassariam em nos representar. O próprio indivíduo, ao descrever-se em um ou dois atributos, padece, pena, sofre e hesita – à exceção de Jaime II, que se definia como coaching quântico-motivacional, digital influencer e personal trainer.

Oficial da reserva do exército, atlético e pretenso inocente, por sua clientela era admirado feito um Apolo de Belvedere cujas tatuagens – a mais simbólica delas, a frase Missão Dada É Missão Cumprida, pintada no antebraço em escrita cursiva – retratavam não só os ideais de sua geração, mas uma história alusiva a culturas masculinas e aos derradeiros guerreiros. Assim acreditava-se, um soldado ou lutador, e assim forjava-se para, em contrapartida, manifestar os defeitos característicos aos homens de sua classe: o orgulho colossal, a severidade, o ego infantil.

Nenhuma das limitações assomava como trágica à Michele quando o casal de namorados decidiu, numa ação impulsiva, compor vidas e trançar destinos após seis meses de relacionamento. Jaime mudou-se para a casa de Michele e consigo levou, somente, Fritz, o dogue alemão, e seus halteres. Um homem precisa apenas de halteres para sobreviver – era um dos mantras espirituosos de Jaime e o mais proferido nos seus seminários.

Ao mutualmente habituarem-se às suas manias e máculas, Michele julgou-o intransigente e autoritário, ou machista, e Jaime enervou-se com perfeccionismo e a teimosia que ela manifestava ao ser contrariada. Michele era sansei, a terceira geração de imigrantes japoneses, e era professora de educação infantil e vegetariana, e apesar dos trinta anos paramentava os ombros com um xale de crochê. Vangloriava-se de seus parâmetros morais e julgamentos minuciosos, e a si confiava a redenção do mundo e da espécie humana. Nas apresentações pessoais declarava-se, sorridente, como virginiana. Era Michele, enfim, abominável como Jaime. Este, com o suceder das semanas, e devido ao seu instinto de caçador, identificou nela uma instabilidade nervosa ou taciturnidade acachapante – e tais comportamentos ele inferiu como naturais à infância da união. Mas ao regressar de viagem em certa circunstância, e ao estacionar o automóvel na garagem e adentrar o lar, flagrou-a com as pupilas dilatadas, ofegante, a desprender um calor estranho à pele. Jaime afastou o dogue Fritz, abraçou-a e beijou-a, e antes de conversarem sucumbiram ao sangue. Comprometido aos braços da paixão após o amor de crepúsculo, entre a vigília e o território dos sonhos recordou-se de Michele e sua condição, dos olhos condensados e malditos, o desespero– e concluiu: ela consumira entorpecentes.

Incapaz de confrontá-la – pois apesar de orador e coach suas palavras eram apropriadas a encorajamentos e exortações, não aos meandros da emoção e dos sentimentos –, precisou, além de constatar em Michele a recorrência de uma disposição soturna, flagrá-la novamente em um estado alterado de consciência para agir – justo ele, cuja vida principiava-se no verbo.

Na manhã de um sábado Jaime levantou-se cedo, preparou café, salada de frutas, despertou-a com afagos e com a paciência dos subjugados e convidou-a para o desjejum. Enquanto ela fartava-se à mesa, ele admirava os traços de sua face, a expressão plácida e complacente, oposta à de seus ápices de melancolia, e ao término da refeição segurou as mãos da namorada, encarou-a e perguntou:

O que há, Michele?

Incontinente, os olhos dela soçobraram-se em lágrimas.

Qual narcótico a derrotou?

Michele, aos prantos, balbuciou:

É muito forte, amor. É uma sensação, e só. Me obriga a atos abomináveis. Me derruba e me alça aos céus, falou ela e mais não disse malgrado a carinhosa persistência do namorado. Orgulhoso com o primeiro dos numerosos, futuros embates inevitáveis a sua admissão de vício, Jaime congratulou-se. Autênticos guerreiros não escolhem batalhas, falou para si, de frente ao espelho. Então começou a, de semana em semana, sitiar e fustigar Michele, e apesar de sua insistência ela não confessava, permitia-se apenas as lágrimas.

Nós haveremos de vencer, bradava Jaime para Fritz, em vislumbres de Júlio César.

Numa segunda-feira de angústia e antes do almoço, e por entrever a namorada em seus pensamentos, abandonou a ordenação das palestras e a assunção de novos compromissos e rumou para casa. No caminho comprou um buquê de flores e bombons sem glúten e lactose. Como era de intenção surpreendê-la, estacionou o carro na rua, longe da garagem e das grades. Sempre assustava amigos e familiares, e sempre compensara suas diabruras. Com cautela abriu e fechou o portão, passou pela monstruosa casa do cachorro, por canteiros cultivados, abriu e fechou a porta de entrada. No hall, ruídos incomuns alarmaram-no. Era o arfar de exaustão e eram os gemidos contidos, ou dolorosos, e era a úmida consistência do ar, e ao julgar com pressa Jaime inferiu que a amada se aproveitava da solidão e da folga matinal para ceder-se aos entorpecentes e aos narcóticos.

James renunciou a propósitos anteriores e, presumindo-a no quarto de casal, correu, atravessou a sala, cortou o corredor e adentrou o recinto onde presenciou uma cena cuja sordidez não será retratada em pormenores: Michele, de gatinhas sobre a cama – mas sob o cachorrinho –, em pleno ato sexual.

Amor, gaguejou ele.

No umbral da porta, estupefato e petrificado, assistiu a namorada rolar para além de Fritz, o dogue alemão, e gritar:

Eu sou assim, Jaime, eu sou assim!

Confinado às esferas da desilusão, ele percorreu a lateral da cama e sentou-se no colchão. Dissipavam-se os marcos da realidade, as sensações e naturezas. Michele, deitada em posição fetal, chorava. Fritz, deitado em posição fetal, lambia os testículos. James II tremeu ao abrir a porta do armário e a primeira das gavetas. De entre as cuecas apanhou um revólver calibre trinta e oito, herança do pai. Malgrado sua resolução fosse a de com celeridade findar a sucessão de exigências conhecida por vida, e a ciência de seus sofrimentos, uma lágrima tocou a ponta do cano antes de ele efetuar um disparo quântico contra o céu da boca.

No velório de Jaime, ao lado do esquife, Michele, de óculos escuros, abraçava Fritz, o dogue alemão.






terça-feira, 19 de março de 2024

Se ela vem


Lá fora, o tempo desaba. Esquento o café e preparo uma tapioca com manteiga. Arrumo os pratos na mesa, dois copos, talheres bem dispostos, como se ela estivesse aqui. Sento e reflito. Cada gole de café, um pensamento demorado. Vou à sala, invariavelmente, para pegar o álbum de fotografias do seu batizado. Como ela era fofa e sorridente… Fernanda foi uma menina muito feliz. Aos dezoito, resolveu que deveria ter uma vida independente e, para isso, teria de flanar por aí. “Pai, estar com você é maravilhoso, mas preciso conhecer o mundo”. Ela, como a mãe artista, precisava viajar, conhecer novos lugares; em suas palavras: se encontrar. Sequer cogito, hoje, a hipótese de Fernanda vir morar comigo. Um acaso do destino nos colocaria frente a frente, depois de seis anos longe. Ela estava em Barcelona, seu ponto de apoio, pois tinha um namoradinho lá. Na última ligação, estava afobada, demonstrando medo. Falamos pouco. Ela disse que precisava desligar, porque teria de cumprir uma missão para um trabalho. Poxa, quase não tive tempo de me despedir. Aflição de pai é uma desgraça; passo horas cogitando desastres. Ficamos, depois, dois dias sem contato. Já a postos com o telefone da Embaixada, Fernanda me ligou, relatando o ocorrido: descobriu que o namoradinho era um fino receptador de produtos roubados. Segundo ela, teria outra residência para comportar câmeras, celulares e inúmeros objetos roubados dos turistas. Foi o motivo de Fernanda se debandar para Madri, onde, segundo ela, poderia se esconder na casa de uma amiga. O dito cujo ainda tentava contato, ligando insistentemente. Soube que ele foi a Madri. Como não conseguia falar com Fernanda, pediu para um amigo ligar e contar que tudo não passava de um mal-entendido; que, na verdade, os produtos replicados eram da coleção de seu avô falecido; que o avô havia morrido há um mês e não tivera tempo de se desfazer legalmente. Ela, sensata, preferiu não pagar para ver e despachou o sujeito. O indivíduo insistiu e foi o motivo para ela requerer uma medida protetiva, que, logo depois, se transformou em prisão. Ela não me contou detalhes, mas deve ter passado por maus bocados. Decidida como a mãe, deu por encerrado a história. Mas a melhor notícia é que Fernanda, após o aperreio, virá para passar uns dias com o pai. E, lógico, farei tudo que for possível para manter sua aura perto da minha: hei de estar vivo e disposto para a próxima primavera, quem sabe, ao seu lado. Se ela vem, tudo flori.

 





domingo, 17 de março de 2024

Amanheço e anoiteço







                                     Amanheço e anoiteço.





              Mas em tarde permaneço.
















domingo, 10 de março de 2024

Eu vivo sempre no mundo da lua


 

Meu filho ensaia um solo em sua guitarra. A música me trouxe lembranças daquele sábado, em julho de 1969. Alguns dias depois eu completaria meus seis anos de idade. Um ano antes, minha mãe e uma cartilha “Caminho Suave” abriram um novo mundo para mim: além de ouvir o que se passava no rádio e no nosso televisor Philco Solid State, eu já conseguia decifrar algumas notícias e os caracteres que percorriam a tela em preto e branco. Também das revistas e jornais.

Tudo se transformava rapidamente. Criança, eu não percebia muito do Regime Militar implantado no Brasil. Não sabia o que era censura, até o dia em que minha professora, no ano seguinte, explicou-me para que serviam os rótulos da Censura Federal exibidos antes de cada programa: se podia mostrar na TV o que não fosse contrário ao Governo. Talvez tenha sido por isso que na mesma época canções como “Eu te amo meu Brasil” passaram a ser cantadas nas escolas.

Meu pai trabalhava muito. Comprara nossa primeira casa e juntava dinheiro para adquirir a sua tão sonhada Aero-Willys 65. Guardávamos o dinheiro em casa, numa lata depositada sobre o balcão do armário da cozinha. Ela se enchia de cédulas de dez cruzeiros novos. As notas de maior valor na época, continham, além do “carimbo” que eliminou três zeros, a figura de Santos Dumont estampada na frente e seu 14 Bis no verso. Eu admirava as chancelas do Presidente do Banco Central e do Ministro da Fazenda e sonhava um dia assinar minhas próprias cédulas.

Naqueles dias, meus pais se preparavam para a festa de casamento de uma das filhas de nossos antigos vizinhos, uma família descendente de imigrantes italianos.

Minha mãe escolheu, numa revista com catálogo de roupas, um conjunto de blusa e maxissaia. As mulheres mais ousadas usavam minissaias. Os botões eram alguns dos detalhes mais importantes na vestimenta feminina. Meu pai passou a cultivar um bigode fino, comprou um terno, camisa e abotoaduras.

Poucos dias antes daquele 20 de julho, meu pai ganhou de presente um compacto do grupo “Os Incríveis” com a regravação de uma música instrumental chamada “O milionário”. Só havia um problema: não tínhamos uma vitrola para tocá-lo. Ouviríamos pela primeira vez na festa de casamento, pois era certo que lá haveria uma, de alta fidelidade.

Vivíamos uma “revolução” política, o Milagre Econômico Brasileiro, uma efervescência cultural: com a realização de festivais da canção (meu primeiro caderno tinha uma fotografia de Chico Buarque na capa e na contracapa a letra de “A Banda”, vencedora do festival de 1966), movimentados por vaias e aplausos, motivados por pensamentos políticos; com a influência da Jovem Guarda inspirada no Beatlemania e com uma identidade brasileira surge a Tropicália, misturando ritmos e estilos. Tudo isso, só fui compreender mais tarde.

Chegou o dia do casamento de Pierina. Na festa muita música e gente que falava alto, com sotaque e com as mãos. Num evento como aquele, não havia muita ocupação para os pequenos. Eu fui salvo por um aparelho de TV, pendurado num galpão da casa da família.

A música se alternava entre tradicionais italianas, canções italianas com versões em português, MPB e Jovem Guarda. Eu, “escondido” debaixo de uma mesa, com a barriga cheia de tubaína, tentava ficar o mais próximo possível da televisão, que durante o dia todo fazia chamadas para a chegada do homem na Lua. Eu me esforçava para ouvir a narração de Hilton Gomes em meio as interferências da transmissão e aos gritos dos jogos de cartas, embalados por muito vinho e pelas canções reproduzidas na vitrola.

Poucos na festa prestaram atenção, mas eu fui uma das 600 milhões de pessoas que assistiram aquela transmissão ao vivo, uma das primeiras, no mundo inteiro. Hoje parece uma coisa muito simples, pois cada um faz a sua própria transmissão, instantaneamente, no seu smartphone, para qualquer lugar do mundo, mas naquela época, transmitir ao vivo era um grande feito. Transmitir diretamente do espaço, da superfície da Lua, mais ainda.

Me esforcei para ficar acordado, até às 23h56min, quando finalmente Neil Armstrong deu seu “pequeno passo para um homem, um salto gigantesco para a humanidade". Meu pai, no exato instante, com ajuda do noivo, colocava “O Milionário” para tocar.

O presidente americano Richard Nixon realizava o sonho de seu rival John Kennedy de colocar o homem na lua até o final da década de 1960 e “superar” os russos na Corrida Espacial, durante mais um episódio da Guerra Fria. Falou de seu gabinete na Casa Branca diretamente com Armstrong, Audrin e Collins, os dois primeiros na superfície da Lua.

No rádio, a chegada do homem à lua foi eternizada pela narração de um jornalista da Rádio “Voz da América”, que dizia em uma gravação, transportada para o vinil: “Você sentiu, ao vivo, todas as emoções da descida dos primeiros homens no satélite da Terra. Viveu com eles este momento histórico de absoluta grandeza. O que você ouviu hoje é notícia, amanhã será documento. Guarde, portanto, essa gravação e no futuro, mostrando-a aos seus netos, voltará a sentir orgulho de ter sido contemporâneo da conquista do espaço”. Acredito que depois disso eu tenha pegado no sono, pois só lembro do dia seguinte na casa de minha avó.

Desde então, a Lua me fascina. Durante bons anos de minha infância pilotei espaçonaves feitas a partir de cadeiras de cozinha e viajei no espaço sideral formado por cobertores. Acredito que tais lembranças inspiraram algumas de minhas histórias de ficção científica, desafiaram a minha imaginação e a de tantos outros. A conquista da Apollo 11 nos deu maiores esperanças de nos lançarmos com mais ousadia ao espaço, pois a curiosidade humana transforma a Terra num lugar pequeno para a nossa inquieta mente, que faz com que a nossa imaginação não tenha limites.

Vivo sempre no mundo da Lua, com a esperança de que a natureza humana não nos torne extintos antes de consolidarmos o nosso caminho no espaço.

Meu filho desconecta a guitarra. Solar “O milionário” era um de meus sonhos, não tive habilidade suficiente. Ele fez por mim.